PARADIGMA

'Estou passando fome, faz um Pix': como pedidos de doação se multiplicaram nas redes sociais

"Tenho 35 anos, sou casada e tenho dois filhos. Estou desempregada, meu marido também está, e nós pagamos aluguel. (...) Estamos com as contas atrasadas, e estão faltando coisas para comer em casa.", relata duma moradora de Blumenau, em Santa Catarina.

Desemprego recorde e novo meio de pagamento sem custos levam a aumento de pedidos de ajuda na internet. Golpistas e robôs tentam se aproveitar da situação

“Tenho 35 anos, sou casada e tenho dois filhos. Estou desempregada, meu marido também está, e nós pagamos aluguel. A empresa em que ele estava trabalhando mandou ele embora, mas vai acertar com ele só dia 26 [de agosto], ele trabalhava de servente de pedreiro. Estamos com as contas atrasadas, e estão faltando coisas para comer em casa.”

O relato é de Fabiana Santos Theodoro, moradora de Blumenau, em Santa Catarina. No início de agosto, ela recorreu ao Facebook para pedir ajuda, após seu marido perder o trabalho na construção civil, tornando-se mais um entre os 14,8 milhões de desempregados do país, número recorde registrado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 2012.

Assim como Fabiana, muitos outros brasileiros têm usado as redes sociais em busca de doações ou ajuda financeira. O fenômeno se tornou ainda mais evidente após a criação do Pix, sistema de pagamento instantâneo lançado pelo Banco Central em novembro de 2020.

Desemprego elevado, queda da renda, redução do auxílio emergencial e a menor circulação nas cidades com a pandemia estão entre os fatores que estão levando as pessoas a implorarem por ajuda nas redes, avalia Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV).

A criação do Pix também contribui para a prática, já que o meio de pagamentos sem custo para os usuários facilitou a transferência de pequenos valores, antes inviabilizada pelo alto custo de meios de transferência como TED e DOC.

Além disso, o auxílio emergencial levou a um avanço da bancarização da população de renda mais baixa, que agora pode se valer de transferências bancárias para receber doações.

Em meio ao desespero das pessoas que de fato estão precisando de ajuda, no entanto, há também golpistas e robôs que tentam se aproveitar da boa vontade dos doadores, segundo um estudo inédito do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), feito a pedido da BBC News Brasil.

A análise de mais de 1,5 mil tuítes de 181 usuários que pediram doações via Pix num período de 15 dias em julho deste ano revelou que ao menos 4% dos perfis e 10% das postagens tinham “alta probabilidade de comportamento automatizado”. Ou seja, muito provavelmente, são robôs programados para pedir doações nas redes.

Twitter e Facebook — que controla a rede social de mesmo nome e também o Instagram — reconhecem o problema e estimulam os usuários a denunciarem perfis suspeitos.

Fabiana e muitos outros brasileiros têm recorrido às redes sociais em busca de doações ou ajuda financeira

Um reflexo da anormalidade da economia

Para Lauro Gonzalez, da FGV, a multiplicação dos pedidos de ajuda e doações virtuais é um reflexo da crise gerada pela pandemia e do momento de instabilidade econômica em que vivemos. “Apesar da recuperação da atividade e relativa reabertura, estamos longe ainda da normalidade”, observa.

Exemplo disso é o fato de que, apesar de os economistas projetarem atualmente um crescimento de 5,3% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2021 — bem acima dos 3% estimados em meados de abril — a taxa de desemprego do país estava em 14,6% em maio, de acordo com o dado mais recente disponível, com cerca de 3,2 milhões de desempregados a mais do que em dezembro de 2019, antes da chegada da pandemia ao Brasil.

“As redes sociais acabam constituindo um veículo propício para as pessoas conseguirem dar escala a coisas que antes era muito difícil escalar. Através das redes sociais, esses pedidos de ajuda financeira ou doações podem atingir milhares de pessoas potencialmente, a um custo bastante reduzido”, acrescenta o economista.

Segundo ele, a perda de renda e a redução da mobilidade nas cidades brasileiras durante a pandemia são fatores correlacionados.

“A perda de renda decorre em parte da própria falta de mobilidade porque, na medida em que as pessoas circulam menos, parcela do seu consumo é deslocado para o ambiente virtual, mas outra parcela não, então a roda da economia gira mais devagar com a falta de circulação e o próprio receio das pessoas”, afirma o professor da FGV.

Nesse cenário de perda de renda e restrição de mobilidade, com deslocamento de parte da vida para o ambiente virtual, uma inovação do mercado financeiro — o Pix — teve um efeito inesperado sobre a vida das pessoas mais pobres.

“O Pix facilita as transações e a transferência de recursos a custo muito baixo — no limite, até a um custo zero”, diz o especialistas em inclusão financeira. “Ele se disseminou rapidamente, sendo adotado com sucesso talvez mais rapidamente até do que o Banco Central esperava.”

Segundo a Febraban (Federação Brasileira de Bancos), até maio deste ano, o sistema contava com 93,6 milhões de usuários cadastrados e a taxa média de crescimento mensal do número de usuários era de 18%. A parcela do Pix no total das transações bancárias passou de 7% em novembro de 2020, para 30% em março deste ano, enquanto os pagamentos via maquininha de cartão (68% para 51%) e via TED e DOC (25% para 19%) perderam espaço.

“Para a população de baixa renda, o custo de transação dos antigos meios de pagamento eram exorbitantes”, observa Gonzalez. Segundo o Banco Central, o custo médio de uma transferência via TED ou DOC é de R$ 11,89, um valor altíssimo considerando que a renda média dos 10% mais pobres do país era de R$ 109 em 2019.

“Os recursos em espécie [dinheiro de papel] eram muito utilizados por conta do elevado custo de transação [das transferências bancárias]: os pagamentos eram caros e faziam diferença no bolso da população de baixa renda. O Pix vem e melhora essa equação”, diz o economista.

O professor da FGV destaca ainda outra mudança recente na vida financeira dos mais pobres: o aumento da bancarização dessa parcela da população, resultado do pagamento do auxílio emergencial durante a pandemia através de contas digitais da Caixa Econômica Federal.

Segundo o Banco Central, o número de brasileiros com conta em instituição financeira ou que consumiam algum produto financeiro (investimentos, por exemplo) chegou a 181,7 milhões em julho deste ano, comparado a 165,6 milhões em fevereiro de 2020, o que significa que 16,1 milhões de pessoas passaram a usar serviços financeiros desde o início da pandemia.

Se por um lado o auxílio estimulou a bancarização, por outro, sua redução este ano — tanto em termos de valor, como de número de beneficiários — empurrou muitos brasileiros para uma situação de precariedade, tendo de recorrer a doações para sobreviver.

Foi o que aconteceu com o trabalhador da construção civil desempregado Ubirajara Ribeiro, de 44 anos e morador de Itaquaquecetuba, no interior de São Paulo.

“Vivo com minha mulher e os dois filhos dela. Nosso Bolsa Família foi bloqueado e cortaram meu auxílio, estou sem comida, sem gás. Vou fazer o que? Fui pedir ajuda”, diz Ribeiro, que recorreu ao Facebook para pedir doações de alimentos ou ajuda para comprar um botijão de gás

Ele conta, porém, ter sofrido muitas humilhações e críticas de outros usuários da rede social.

“Eu pedi ajuda e me xingaram, chamaram de marmanjo velho, ninguém ajuda não. Quando ajuda, primeiro humilha, depois ajuda”, lamenta.

Golpistas e robôs

Em meio às pessoas que pedem ajuda por de fato estarem passando dificuldades, existem perfis que se passam por necessitados para conseguir dinheiro às custas da boa-fé dos doadores.

Alguns desses perfis usam fotos de terceiros na tentativa de comover os potenciais contribuintes, como imagens de crianças pobres e de geladeiras vazias que não pertencem ao pedinte.

No Facebook, há relatos de pessoas que dizem ter doado e sido imediatamente bloqueadas pelo pedinte, ou constataram que o perfil havia sido deletado logo após a doação.

No Twitter, pedidos de doação ilegítimos são feitos em alguns casos por perfis automatizados, conforme revelou o estudo feito pelo ITS a pedido da BBC News Brasil, utilizando a ferramenta Pegabot, lançada pelo instituto em 2018.

Segundo Maria Luiza Mondelli, cientista de dados do ITS e autora do estudo, esses perfis têm algumas características em comum: muitos foram criados recentemente; publicam muito num curto espaço de tempo; repetem o mesmo conteúdo em diversas postagens; usam em seus tuítes hashtags que estão sendo muito compartilhadas naquele momento; e publicam em resposta a perfis verificados de amplo alcance, como o do youtuber Felipe Neto, da ex-BBB Juliette, do clube de futebol Flamengo, do presidente Jair Bolsonaro e de veículos de imprensa.

Uma das estratégias dos pedintes automatizados é postar em resposta a perfis verificados de amplo alcance, como o do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos)

Mondelli explica a estratégia dos robôs de comentar tuítes de famosos ou com grande número de interações. “É uma questão de alcance. Quando você comenta ou compartilha um tuíte de uma conta verificada ou com grande número de seguidores, você consegue uma visualização maior do seu próprio tuíte, alcançando mais pessoas”, afirma a cientista de dados.

“A automatização é uma forma de conseguir distribuir mais tuítes num tempo menor, com isso esse perfis buscam ter um alcance maior e, consequentemente, obter um maior número de doações”, acrescenta.

“Parte desses perfis podem sim agir de má-fé, por isso a verificação é tão importante”, alerta a pesquisadora. Segundo ela, além de estar atento às características mais comuns dos perfis automatizados, os usuários do Twitter também podem usar o Pegabot quando estiverem em dúvida, pois a ferramenta está disponível para o público em geral no endereço https://pegabot.com.br/.

A BBC News Brasil procurou o Facebook e o Twitter para saber se as empresas percebem um crescimento dos pedidos de doação; se conseguem avaliar se tratam-se em sua maioria de pessoas reais ou robôs; qual a política das plataformas em relação a esse tipo de postagem; e se há alguma ação quando se constata que um perfil é automatizado ou está agindo de má-fé.

Ambas as empresas declinaram ao pedido de entrevista e optaram por responder por e-mail.

O Facebook, dono da rede social de mesmo nome e do Instagram, respondeu o seguinte:

“Diariamente, vemos as pessoas usando o Facebook para encontrar e oferecer ajuda em suas comunidades. Pensando nisso, lançamos recursos como a Central ‘Ajuda da Comunidade’ ou a ferramenta ‘Doações de Sangue'”, afirma a empresa.

“Vale ressaltar que não é uma violação das regras do Facebook pedir ajuda a amigos e familiares por meio do próprio feed, grupos ou páginas. Entretanto, se passar por outra pessoa ou criar uma conta falsa é uma violação dessas regras. Usamos inteligência artificial para encontrar e remover esse tipo de atividade, mas também incentivamos que as pessoas denunciem pelo próprio aplicativo os casos suspeitos.”

Já o Twitter exigiu ter acesso à relação completa de tuítes e perfis analisados pelo ITS a pedido da BBC News Brasil e encaminhou então o seguinte posicionamento:

“O Twitter analisou as contas enviadas pela reportagem e as suspendeu por encontrar violações às suas regras — que incluem, por exemplo, a política contra spam e manipulação da plataforma e a política contra fraudes financeiras.”

“Vale lembrar que contas suspeitas de estarem em violação de nossas regras podem ser denunciadas por qualquer pessoa — o Twitter usa aprendizado de máquina para detectar proativamente esse tipo de atuação, mas também conta com a denúncia das pessoas na plataforma para avaliar os perfis e tomar as medidas cabíveis.”

Por: Thais Carrança / BBC Brasil